MEMÓRIA DESCRITIVA
DOS PROJECTOS PARA AS DECORAÇÕES MURAIS
DA ESCADARIA NOBRE DO
PALÁCIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL. LISBOA
Uma decoração para a Escadaria Nobre do Palácio da Assembleia Nacional tem de ser:
HARMÓNICA
SOLENE e
PERDURÁVEL
Não pode obedecer-se a uma moda transitória, antes deve penetrar-se de Leis estéticas que não podem ser desmentidas.
Estes postulados têm de ser seguidos pelo Pintor, ainda que para a sua obediência haja que sacrificar outras coisas que também interessam a um Artista moderno.
I – A decoração deve ser HARMÓNICA
Devem os Trípticos ser equilibrados, bem compensados na simetria dos seus valores cromáticos; e, também harmónicos com a Arquitectura.
Este postulado levou-me a idealizar uma composição que, embora sóbria na distribuição das grandes massas, tivesse um arabesco tão variado que pudesse ligar-se ao caracter ligeiro da Arquitectura Neo-renascentista do ambiente. Também esta, como é natural, determinou a escala escolhida para as figuras.
Para manter essa harmonia houve ainda que atender a outro problema: o que provém do facto das decorações se destinarem a ser vistas, no todo ou em parte, de níveis muito diferentes. Procurei resolver essa dificuldade agrupando as figuras com pouca variação dos seus tamanhos, de forma a evitar uma perspectiva muito precipitada; e encobrindo, o mais que me foi possível, a linha do horizonte. Embora esta fórmula seja nitidamente anterior ao Renascimento, creio ser ela, para o caso presente, a solução preferível.
Esta concepção, gótica, também se pode reforçar com a circunstância de ser a que melhor se ajusta à indumentária das figuras medievais que, como se verá, estão projectadas para estes painéis.
II – A decoração deve ser SOLENE
Num local nobre, o assunto duma decoração deve ser digno; e as Figuras devem apresentar-se em atitudes graves e calmas.
À gravidade da composição e do desenho corresponderá solenidade na Côr. Será esta de tons brandos e modelação suave, e, tanto quanto possível, mate. Creio que assim nos aproximamos do tipo consagrado da Pintura Mural e da Tapeçaria, que não consente abstracção ou alheamento das paredes onde aquelas decorações se colocam.
III – A decoração deve ser PERDURÁVEL
Para isso se imaginaram as figuras e as coisas com lógica de situação, de posição, de indumentária e de acessórios – e se desenharam com caracter realista, feição que suponho natural resistir melhor à análise crítica futura, se não já é presente.
Não vai essa feição realista do desenho ao ponto de pretender dar a estrita realidade duma cena: levar-nos-ia essa pretensão ao referido alheamento do plano da parede – o que, como se disse, é necessário evitar.
Sob o ponto de vista técnico, a execução dos painéis em tela de boa qualidade, e empregando exclusivamente cores de permanência absoluta e assegurada (Ultramar, Veneza, Oca e Terras, Preto e Branco de Zinco), dá-lhes maior garantia de duração que pode exigir-se da pintura a óleo.
TEMAS
Seguiram-se os temas já apresentados a Sua Excelência o Senhor Ministro das Obras Públicas e por ele aprovados em princípio.
Há duas paredes a decorar e há duas Câmaras: Natural é dedicar uma parede a cada Câmara. Estas radicam-se nas antigas e grandes tradições nacionais; aceita-se pois, para alegoria da Câmara dos Deputados, a evocação das primeiras Côrtes portuguesas em que, provavelmente, houve representação popular (os primeiros Deputados) – e para alegoria da Câmara Corporativa, imagens das forças vitais da Nação, nas suas subdivisões consagradas: a Agricultura, a Indústria e o Comércio.
Primeiro Tríptico: EVOCAÇÃO DAS CÔRTES DE LEIRIA, EM 1254, COM D. AFONSO III
Pela primeira vez se pode assegurar a presença nas Côrtes dos representantes do Povo – os Procuradores dos Conselhos, os primeiros Deputados.
Além do Clero, com as suas insígnias – as Cruzes, os Báculos e as Mitras –, da Nobreza, com as suas armas – as espadas, as lanças e os escudos –, pela primeira vez aparece o Povo com os seus direitos assegurados e escritos, nos Forais.
a) Painel da esquerda: O CLERO
Ocupa, em relação aos Nobres, ao Rei e ao Povo, o lugar que sempre ocupou nas Côrtes Portuguesas, segundo as plantas mais antigas.
Representam-se neste painel os Arcebispos, os Bispos, o Abade de Alcobaça, os diáconos, os Mestres das Ordem Militares de Santiago, do Templo e de Aviz (ainda então com a cruz encarnada), o Prior da Ordem do Hospital, o Prior dos Pregadores (Dominicanos) e o Guardião dos Frades Menores (Franciscanos). Cruzes Procissionais, Pálio Rico, Círios, Caldeirinha e Incensário.
b) Painel do centro: O REI E O POVO
O Rei, de espada cingida e Ceptro na mão, sentado no seu Trono, rodeado dos funcionários do seu Palácio: o Canciller, o Superjudex, o Alferes-menor, o Vice-mordomo, o Reposteiro-Mor, o Capelão e os Físicos, segundo as práticas leonesas e a maneira francesa, que o “Bolonhez”, após a sua longa permanência na Côrte de Paris, não deixaria de adoptar em Portugal.
No primeiro plano, conscientes da sua força nascente, os Procuradores dos Conselhos, com seus Forais na mão.
c) Painel da direita: A NOBREZA
Os Ricos-Homens, os Infanções, os Cavaleiros, os Escudeiros e os Condes, com suas armas e suas signas. Ao fundo, o Castelo de Leiria – ainda então românico.
Segundo Tríptico: EVOCAÇÃO DAS FORÇAS VITAIS DA NAÇÃO PORTUGUESA NO SÉCULO XV
A grande tradição corporativa encontra-se, iconograficamente, mais documentada no Século XVI. Porém, para assegurar maior unidade aos dois Trípticos, eu quis ainda neste, manter o caracter medievo. Suponho que não será difícil de imaginar enquadrada no final da Idade Média a gente que se escolheu para animar a parede.
a) Painel da esquerda: A AGRICULTURA
A Lavra, a Sementeira, os Gados, os Frutos. É indispensável cingirmo-nos às coisas, aos produtos e aos animais possíveis da época e à verosimilhança e simultaneidade dos factos representados.
De todos os elementos iconográficos e etnográficos, julgo serem os deste Painel os mais seguros; São alguns copiados de objectos e alfaias contemporâneos que condizem, em absoluto, com os documentos da época, como o velho arado romano, os ceifões, a enxada, o jugo, e, como o cesto, certamente o tarro também.
b) Painel do centro: A INDÚSTRIA
O Pescador, o Ferreiro, a Fiandeira, o Carpinteiro, o Cordoeiro, o Alvanéo, o Sapateiro, o Oleiro, o Cerieiro, o Atafoneiro, o Armeiro, o Padeiro, o Sombreireiro, o Alfaiate, e, no meio deles, o Arquitecto, representando, talvez, a Arte e a Ciência, e o Letrado, que simbolizará os estudos das Humanidades e da Filosofia.
Centrando o Painel e o Tríptico, a imagem de São Vicente, patrono de Lisboa; da Lisboa já então, e definitivamente, cabeça da Nação.
c) Painel da direita: O COMÉRCIO
Os Mercadores do Norte e do Levante, com suas fazendas; os Vinhos e os Cereais que se exportam; As Naus de Comércio e os Transportes terrestres.
- o O o -
Não se estranhe que os Painéis do Clero e da Nobreza representem estes Estados ao ar livre. Isso foi uma consequência do outro Tríptico, mas não envolve infidelidade histórica, pois nas Côrtes medievais os três Estados reuniam-se separadamente, em qualquer local propício.
No Painel da Indústria, os Mesteirais representam-se com fatos de trabalho, embora com insígnias festivas. Houve a intenção de não tornar monótona a indumentária. Os fatos dos Embandeirados, Mestres e Juiz da Casa dos 24 seriam análogos entre si. Pareceu-me ser mais representativa a ideia que seguimos.
Também não se suponham esgotadas as possibilidades de informação das Fontes que procurei, e que, além das amáveis indicações pessoais de autoridades especializadas, como os Excelentíssimos Senhores Coronel Costa Veiga, Afonso de Dornelas, Dr. João Couto, Dr. Cardoso Pinto, Padre Dr. Costa Lima, Gustavo de Matos Sequeira, Luíz Pastor de Macedo, são, entre outros, os seguintes autores:
Herculano – História de Portugal, VII e VIII;
O Monge de Cister (Procissão de Corpus)
Gama Barros – História da Administração Pública em Portugal, I
Fortunato de Almeida – História da Igreja
Faria e Souza – Europa Portuguesa, III
Virgílio Correia – Três túmulos
Sánchez Albornoz – La Cúria Régia Portuguesa
Id. Id. – Estampas de la vida de León hace mil años
Sempere – História das Cortes em Espanha
Leite de Vasconcelos – A barba em Portugal
Pinto Loureiro – A Casa dos Vinte e Quatro
Damião Peres, Angelo Ribeiro, Lúcio de Azevedo – História de Portugal – Barcelos
Paulo Merêa – O Problema do Feudalismo em Portugal
Villanova – Los ornamentos sagrados en España
Viollet-le-Duc – Dictionaire raisonné, etc.
Camille Piton – Le Costume Civil en France
F. Hottenroth – História del Arte; Trajes
Racinet – Le Costume
Von Bohen – La Moda
P. Lacroix – La Vie Militaire et Religieuse au Moyen Áge
João Grave – Castelos Portugueses
Armando de Matos – Evolução das Armas Nacionais
Larchey – Costumes Vrais
Etc.
Ainda apontamentos e notas nas Exposições dos Centenários:
De Ourivesaria Sacra, em Coimbra
De Moldagens de Escultura Medieval, em Lisboa, Museu das Janelas Verdes
Das Côrtes do Reino, em Lisboa, no Palácio da Assembleia Nacional
E também alguns documentos dos Cortejos Corporativos de Bruxelas, Ommegang, e fotografias de insígnias de Corporações dos Museus Reais de Bruxelas e de La Byloque (Gand).
Igualmente apontamentos de insígnias de algumas Corporações francesas, tiradas de documentos da Biblioteca Nacional de Paris e de objectos do Museu regional de Zurich.
(Ass. Jaime Martins Barata)