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SEIS BELOS PAINÉIS DECORATIVOS
DE MARTINS BARATA
NO PALÁCIO DE S. BENTO
Por Fernando de Pamplona
Nesta época de improvisação, de velocidade, de vertigem, estamos quase desabituados das obras longamente elaboradas e longamente amadurecidas, que representam o esforço de uma vida ou, pelo menos, devoram muitos anos de trabalho afincado e ardoroso. Isto sobretudo no domínio da arte, em que se passou da vasta composição ao aspecto parcelar, à figura avulsa, e em que se trocou a exaustiva solução dos problemas pelo apontamento impressivo, pela notação picante e fugidia. Quando surge, pois, uma obra de largas proporções e de grande fôlego, ficamos naturalmente surpreendidos e tomados de respeito. Eis o que sucede agora com os seis belos painéis decorativos de Martins Barata, que, no Palácio de S. Bento, enchem as altas paredes da galeria sobranceira à escadaria nobre e se integram admiravelmente na rigidez do seu esquema arquitectónico graças à hábil solução dos mais intrincados problemas.
Martins Barata notabilizara-se há muito na aguarela, ao fixar tipos rústicos vigorosamente caracterizados. Depois, na Exposição do Mundo Português, no Pavilhão de Lisboa, revelara já extraordinários dotes para a composição histórica em dois painéis alusivos à conquista da cidade por Afonso Henriques e pelos Cruzados e ao cerco longo e terrível que lhe puseram os castelhanos no tempo do Mêstre de Aviz – obras notáveis de pintura a cera, em que o branco e o negro davam aos motivos históricos grande sobriedade expressiva. Fôra uma das grandes e belas e reconfortantes surpresas da Exposição de Belém – essa magnífica vitória nacional da era de Salazar. Mas a era de Salazar continua – e, por isso, não faria sentido que um artista da fibra e do poder de Martins Barata cristalizasse em seu esforço. Ele também o compreendeu – e ao longo de alguns anos de estudo, de meditação, de febre criadora, construiu com segurança uma vasta obra de conjunto, que podemos sem favor classificar de monumental. Monumental não apenas por suas largas dimensões mas também e sobretudo por sua poderosa concepção plástica, assente na extraordinária solidez da estrutura e no escrúpulo e rigor da execução e agigantada por um raro sentimento evocativo e interpretativo e pela pura flama luzíada que a envolve, aquece e doira. Nestas imensas telas trabalhadas com largueza, numa técnica simples e directa que lembra a pintura a fresco, a urdidura soberba afere-se pela feliz ordenação dos conjuntos e pela justeza dos valores e, por outro lado, a tonalidade geral, rica de gradações mas sóbria de efeitos, é a que melhor convém ao género decorativo e a que mais nobreza empresta aos temas históricos. Ao contrário dos dois painéis da Exposição de Belém já atrás citados, que têm a animá-los um sopro de epopeia, aqui os motivos são tranquilos, embora plenos de majestade – e Martins Barata tratou-os com aquela nobreza calma e recolhida que era, em circunstâncias tais, de bom conselho.
Nada de sensacional, de empolgante, de esdrúxulo que nos salte aos olhos – mas eles embebem-se longamente nos largos painéis e vão-nos perscrutando, entendendo e amando cada vez mais e melhor, até se sentirem seus prisioneiros. O artista não procurou impressionar-nos em superfície, mas em profundidade. Não buscou os feitos fáceis, mas as emoções altas e puras que atingem as cumeadas da alma.
Martins Barata cindiu a sua composição em dois trípticos ordenados dentro de uma larga simetria, em que as massas se equilibram e os sábios contrastes dão o preciso relevo às ideias e figuras. Alinham-se eles em duas paredes opostas: separa-os um vasto espaço, mas une-os a identidade de conceito e de objecto, prende-os um poderoso laço invisível. Os dois trípticos formam afinal um imenso políptico, cujos elementos se dispõem em dois agrupamentos paralelos. Ambos eles evocam a Nação no momento de atingir os seus limites territoriais no continente europeu, que a tornam, sob este aspecto, a mais velha de todo o Ocidente. O primeiro deles evoca as Côrtes de Leiria de 1254 – aquelas em que tomam assento pela primeira vez, ao que se julga, os representantes do povo: ao centro levanta-se o trono, em que D. Afonso III, grave e majestoso, se vê rodeado pelos homens bons dos concelhos, de expressão firme e trajos sombrios; de um lado, junto à capela de S. Pedro, em que ardem círios, agrupa-se o clero, recortam-se báculos e refulgem oiros de vestes prelatícias, a par da modéstia do burel ou da estamenha dos monges tonsurados – uns e outros de olhos cravados na lei de Deus e no bem maior das almas; do outro lado, no sopé do velho e altivo castelo leiriense, estão os nobres de corpos rijos e máscaras sem medo, com suas armaduras fulgurantes, suas lanças e espadas de bom aço e de afiados gumes e seus pendões e flâmulas a bater ao vento – símbolos de poderio e de prosápia. No outro tríptico, no painel central, vêem-se os representantes das artes e ofícios, desde o arquitecto que ergue as catedrais e as alcáçovas até à simples tendeira, de cujas mãos rudes há-de sair o pano – a única mulher, ao que supomos, presente nos painéis; de um lado e do outro a agricultura, com a visão dos campos férteis, dos lavradores operosos e dos mansos gados, e o comércio e a navegação – rostos fechados e espertos de mercadores que tudo pesam com os olhos, dorsos possantes de naus que vão rasgar as ondas verdes… Neste último painel entrevê-se o mar, que será, em épocas seguintes, a maior das províncias portuguesas… Através de todas as telas desenrola-se o friso das figuras da raça, tal como sucede nos painéis gloriosos de Nuno Gonçalves, cujas sugestões nobilíssimas bebeu Martins Barata. É tão grande o efeito da massa, a beleza do conjunto, que pareceria quase mesquinho querer apreciar os pormenores. Eles foram, aliás, escrupulosamente estudados um por um e podem considerar-se dignos da categoria desta obra. Mas é a sua monumentalidade que sobretudo importa encarecer, pelo que representa de pujança criadora. É ela pois muito especialmente que, com grande admiração, nós saudamos.
Uma composição pictórica de tal envergadura só foi possível porque a Revolução Nacional criou o clima de espiritualidade e de portuguesismo propício ao seu fortalecimento e porque assegurou as condições materiais de estabilidade política e de projecção aos artistas capazes de encorajar alguém a meter ombros a empresa tamanha. Não devemos esquece-lo: as grandes obras, que não traduzem apenas o mérito de um homem mas o valor e as possibilidades de um povo são o fruto sazonado dos grandes ciclos históricos. E esta é uma delas.
Fernando de Pamplona