ACÇÃO, 10-5-1945

Acção
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Os tipos eternos da grei
OS PAINEIS DE MARTINS BARATA
 
Por Fernando de Pamplona
 
     Os painéis da evocação histórica pintados por Martins Barata para os Passos Perdidos da Câmara Corporativa, no Palácio de São Bento - obra cuja inauguração constituiu po certo o maior acontecimento artístico do ano transacto - aliam ao seu valor histórico - monumentalidade da composição, largo sentido decorativo - o interesse excepcional de haverem fixado superiormente tipos eternos da grei.
     Nesses dois poderosos trípticos, enquadrados no condicionalismo arquitectónico do local a que se destinavam - pilastres e arcadas de pedra de tons frios - o pintor ressuscita o Portugal de antanho, o Portugal medievo através de figuras fortemente características da grei lusíada, de tipos bem enraizados no torrão e que, por isso, ao longo de séculos, mantiveram as suas constantes étnicas. Esses homens de Duzentos e de Quatrocentos, iguais aos que vimos representados em obras do tempo, puderam ser tirados de modelos de hoje, sem nada perderem do seu carácter. Mas, para tanto, foi preciso que um artista sentisse e descobrisse essas correspondências raciais, essa vitoriosa continuidade e permanência da grei, e soubesse dar-lhes expressão plástica, arrancando À multidão que passa imagens representativas do português de sempre, tal como fizera Nuno Gonçalves há quinhentos anos.
     É esta a grande lição dos painéis de Martins Barata: os séculos passam e, com eles, os trajos e os usos, mas os portugueses continuam os mesmos, no seu corpo e na sua alma. Os mesmos do século XIII, em que se encetava laboriosamente a sua organização interna; os mesmos do século XV, em que Portugal embarca para os descobrimentos e semeia pelo mundo novas Lusitânias. São de facto estas duas épocas que Martins Barata faz reviver em seus dois trípticos. No primeiro deles, rememora as Côrtes de Leiria de 1254, as primeiras em que, segundo se crê, tomaram assento os representantes do povo: ao centro, D. Afonso III, de cetro e de coroa, senta-se no trono, rodeado pelos membros da Curia Régia, enquanto no primeiro plano, assentam os deputados dos conselhos, que exibem as cartas de foral, graves e dignos em suas roupas negras, ciosos da conquista de novos direitos e justamente envaidecidos da tácita aliança com o Rei contra os privilegiados; à esquerda, junto da capela de São Pedro, agrupa-se o clero, de rostos alumiados pela chama de fé - os bispos com os seus pluviais, seus báculos e mitras faiscantes de oiro e de pedrarias e os abades dos mosteiros com seus hábitos pobres de estamenha e de burel; à direita, ao pé das grossas muralhas do Castelo de Leiria, está a nobreza de sangue godo, endurecida nas pelejas e afeita ao mando e poder - ricos-homens, infanções e cavaleiros, que se vestem de ferroe cingem com orgulho suas armas, enquanto no ar se erguem flâmulas e pendões de senhorio e à roda se ajuntam falcoeiros e monteiros, com suas aves de presa e seus lebréus. No segundo tríptico, ressurgem os obreiros do século XV - obreiros da matéria e do espírito - assinalados pela energia e decisão dos seus traços fisionómicos e pela sóbria indumentária, que, com dobrado vigor, lhes acentua o carácter tão nosso: ao centro vêem-se os mesteirais, que têm a presidi-los a imagem de São Vicente, patrono de Lisboa; de entre eles, avulta o arquitecto, de trajos claros, luminosos, com a maquete de um templo na mão, mais o letrado, de vestes escuras, com seu vasto in-folio forrado de carneira e, à sua roda, o mosqueado enxame dos sapateiros, algibebes, ferreiros, tanoeiros, espadeiros, ourives, construtores de naus, todos com suas insígnias corporativas, e, no primeiro plano, a fiandeira com o fuso mais a roca - a única figura feminina neste aglomerado de homens rijos como as armas; à esquerda, é a lavoura, com os campos férteis, as árvores frondosas, os semeadores - lavradores mais os seus gados mansos, o pegureiro preso ao rebanho, a exuberância e côr dos frutos; à direita, o comércio e a navegação, os mercadores bem arreados e cheios de arrogância, que tiram das arcas de couro os panos adamascados e os ricos veludos de Flandres ou tomam o peso aos cofrezitos de prata lavrada qie farão o regalo de damas e donzelas, enquanto, junto ao cais, se ergue o negro costado duma nau do Norte e, mais ao largo,  se recorta perfil airoso dum barco levantino. A evocação é perfeita: esses homens de hoje, tetranetos dos de outrora, oriundos da mesma cepa generosa e vivaz, parecem, graças à magia da indumentária, do fundo dos séculos, das brumas de  Duzentos ou de Quatrocentos...
     Como conseguiu o artista obter resultado tão surpreendente e maravilhoso? Para modelos das figuras de antanho, teve artes de escolher gente de ar livre, queimados pelo sol a pino, pelas geadas e pelas ventaneiras, gentes puras e sãs da serra, da planície ou da beira mar, que se mantiveram fiéis a si próprios e por isso não mudaram - camponeses, pegureiros, pescadores, mendigos. No povo simples, de traços bem vincados e fortes, está o próprio humus da nação - portanto aquele barro dúctil em que se podem e devem plasmar as grandes visões evocativas. Por isso Martins Barata obteve assim um friso esplêndido de figuras vigorosas e expressivas - marcadas a fogo pelo sêlo da raça. É deste facto o seu profundo e vivo portuguesismo que nos impressiona e empolga: esses homens medievos que reencarnaram em nossos dias numa composição monumental são o testemunho flagrante da permanência e da eternidade da grei. Certo cavador de enxada que o artista revestiu do hábito branco dos dominicanos apareceu de súbito a seus olhos espantoso de dignidade. E aquele mendigo de olhos tristes e meigos a quem impôs a mitra episcopal surgiu de repente maior e mais nobre, como que agigantado, com sua expressão mansa e boa, radiosa de vida interior. O que neles havia de belo e de profundo veio assim à tona de água, à flor da pele, graças à intuição extraordinária do artista, que, com um pedaço de burel ou de brocado, os fez recuar no tempo.
     A raça portuguesa está ali. Não que haja raças puras - longe de nós pretende-lo. Mas o complexo étnico - físico e psíquico - que se fixou no português de há sete ou oito séculos, substancialmente idêntico ao português actual, tem características bem definidas, bem individualizadas - características inconfundíveis. Alguns raros artistas, através dos séculos souberam descobrir e representar com vigor e flama esse complexo de caracteres rácicos, não apenas avulsas, mas em vastos conjuntos bem concatenados e definidores. Martins Barata enfileira entre eles. E é a sua glória.
Fernando de Pamplona