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SÃO HOJE INAUGURADOS OS TRÍPTICOS DE MARTINS BARATA
NO PALÁCIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL
A Tradição da pintura histórica portuguesa entronca seus remotos fundamentos de origem nas tábuas de Nuno Gonçalves. Volta a definir-se, vagamente, muito mais tarde, com um ou outro pintor do Romantismo e mais acentuadamente com Sequeira. Embora longe de corresponder em intensidade evocadora e frequência de motivos à abundância de pretextos históricos de que dispõe a nossa narrativa nacional, é depois do último quartel do século passado que ela mais se documenta em escassas zonas monumentais do País. Pode dizer-se que alguns dos maiores nomes da nossa pintura deixaram neste período, em trabalhos de tal género, o melhor índice das suas qualidades e que outros encontraram até, na escolha desses motivos, exactas aplicações para o seu instinto criador de emotivas sugestões de beleza. O recheio artístico do Palácio de S. Bento, que já antes das suas recentes e vultuosas obras Ramalho considerava «o mais importante, o mais grandioso, o mais belo de todos os recintos portugueses edificados durante o período dos últimos cem anos», é agora extraordinariamente valorizado com os dois grandes trípticos da escadaria nobre que Martins Barata pintou e o Sr. Presidente da República hoje inaugurará solenemente.
Martins Barata começou pela demorada experiência de processos que durante muitos anos lhe permitiram todas as tentativas de emprego do colorido e vigorosa segurança de desenho, a apaixonante tentação dos temas históricos que, em breve, havia de absorve-lo em ânsia de profundidade interpretativa e demonstrando objectivos de especialização. Chegou à técnica do óleo que lhe prometeu totais possibilidades para a melhor e mais vasta expansão do seu admirável temperamento de pintor, com estas raras disposições a assegurarem-lhe triunfo completo – sentimento artístico delicadíssimo de gosto; tendência permanente para construir, sem alardes, obra definitiva e capaz de atingir nível de qualidade representativa não só da sua individualidade mas também de uma época; sérias preocupações para conseguir solução pessoal não só para a revelação da sua arte mas até para os problemas «oficinais» da pintura. Os seus notabilíssimos trabalhos na Exposição de Belém foram, por assim dizer, intermédio entre pontos distintos e culminantes da sua carreira excepcional. Agora, perante a obra que realizou para aquele palácio, a mais inédita afirmação a fazer e a mais directa conclusão a tirar é de que Martins Barata se fixou, definitivamente, em alta situação de prestígio muito justo como um dos mais fortes e representativos valores da pintura portuguesa do nosso tempo. São mais de setenta metros quadrados de pintura trabalhada intensamente no escrúpulo das exigências do desenho, na preparação pormenorizada dos efeitos e no estudo minucioso de todos os objectivos a conseguir – três anos de esforço absorvente e durante os quais, para que a sua obra atingisse, efectivamente, expressão de um momento invulgar e empolgante de vitalidade da arte portuguesa, capaz de enfrentar sem receio o futuro, o artista teve de resolver da melhor forma muitas e embaraçosas dificuldades. Tomou como intenção alegórica a representação, no plano histórico, dos poderes políticos correspondentes à Assembleia Nacional e das funções da Câmara Corporativa: a composição de cada tríptico subordina-se com o mais perfeito sentido estético às linhas gerais da arquitectura do recinto que impunham especial consideração pelas dominantes que resultam das marcadas inclinações da escadaria, por um lado, e pelas verticalidades dos volumes intercalares, por outro, atendeu-se à circunstância de existirem pontos de visão incompleta dos painéis e às duas exclusivas dimensões de perspectiva – ou 2 ou 20 metros – o que levou Martins Barata aos cuidados de uma pintura necessariamente suave para suportar análise excessivamente próxima, e ao mesmo tempo, marcada de contrastes e um pouco cenográfica de composição, para ser examinada na distância maior. Corrigiu-se a predominância local do branco árido da pedra de revestimento com a acertada escolha de tonalidade geral de cores «quentes» ligadas a breves acentuações de claridades inteligentemente distribuídas. Impossível traçar no reduzido espaço de uma nota de impressões o descritivo desta obra da Martins Barata. Acentuamos, no entanto, que não há nela nenhuma das fatais e fáceis tentações do género, nem pretenciosismos absolutos de um rigor histórico que, lamentavelmente, sacrificasse o belo e emocionante espectáculo decorativo à frieza dura de uma erudição inacessível e inerte; nem arrebatamento declamatório de atitudes; nem exclusivismo documental a tolher os movimentos e a inspiração do artista, que em tudo, nas fisionomias e nos trajos, na gradação dos planos, no gosto do colorido e sobretudo nesse esplêndido sentido de harmonioso equilíbrio da composição geral – uma das provas fundamentais deste trabalho é um dos motivos de completo triunfo de Martins Barata – agiu com a mais total seriedade, aproveitando os recursos da sua maneira pessoal para conseguir a realização das intenções desta obra de pintura histórica, essencialmente decorativa e evocadora. O carácter racional está em tudo expressivamente. Repare-se, por exemplo, no tom subtil, suavíssimo, das figuras, que não se ostentam e antes se mostram em serena obscuridade representativa, talvez modestas mas não tímidas, recolhidas mas não humildes, dignas e solenes mas não teatrais pescadores de Nazaré, brutos ganhões das terras alentejanas, velhos homens dos caminhos de acaso, de faces queimadas pela rudeza da vida ao ar livre foram os modelos do pintor. Assim, por toda a parte, um puríssimo sentimento rácico se alia a evidente sentido humano. Embrulhados nas sedas e nos damascos, em hábitos de Igreja ou burel grosseiro de trabalhadores, encarapuçados de barretes e gorros, de mitras e capacetes, as fisionomias destas personagens são tanto de hoje como dos séculos remotos e sempre bem portuguesas. Uma galeria de perto de duas centenas de estudos de pormenor, que se mostra em sala próxima, completa a ideia da profunda seriedade e altíssimo valor artístico destes trabalhos e da excepcional categoria em que, com eles, se fixou o seu autor no quadro dos valores mais positivos e mais nítidos da pintura portuguesa contemporânea.