Artigo Notícias Magazine

Artigo publicado na Notícias Magazine (Diário de Notícias) em 25 de Março de 2001
 
     Martins Barata, um Pintor (quase) esquecido    
 
     Jaime Martins Barata é o nome de um pintor desconhecido para a maioria dos portugueses, apesar de parte da sua obra ter literalmente andado de mão em mão durante décadas, sob a forma de selos e de moedas. Grande parte do seu trabalho de maiores dimensões está espalhado pelo País, bem à vista de todos, em igrejas, palácios da Justiça, e até na Assembleia da República.
     Mais de cem anos passados sobre a data do seu nascimento, a Notícias Magazine recorda um pintor injustamente esquecido nos livros de História.
     Apesar das suas relações com Almada Negreiros, Fernando Pessoa, Abel Manta, Leitão de Barros... 
 
Texto de Paulo Miguel Martins
(clicar nas imagens para ampliar)
 
     Martins Barata nasceu a 7 de Março de 1899, no Alto Alentejo, vivendo a sua infância em Póvoa e Meadas. Órfão de pai muito novo, veio com a mãe e o irmão para Lisboa terminar os estudos superiores. Frequentou a Faculdade de Ciências mas acabou por dedicar-se à arte, pois desde pequeno pintava aguarelas. Na Sociedade Nacional de Belas Artes conviveu com artistas em início de carreira, como Cottinelli Telmo, Jorge Barradas, Abel Manta e Leitão de Barros. Conheceu, em exposições, Roque Gameiro, que tal como ele era um apaixonado pela aguarela. Não só ficaram amigos como Martins Barata veio a casar com uma das suas filhas. A família Roque Gameiro morava na Amadora, pelo que ia até lá no comboio que partia da estação do Rossio. Aí cruzava-se por vezes com Fernando Pessoa, que lhe recitou um dia em “primeira mão” o poema O menino de sua mãe. Ainda antes de casar, decidiu seguir a carreira de professor de Desenho. Com 23 anos, foi nomeado para o liceu Pedro Nunes e um ano depois para o de Portalegre. No ano em que se casou, em 1925, foi colocado em Setúbal, estabelecendo-se definitivamente na capital em 1928, no liceu Gil Vicente. Era muito dedicado aos alunos, abrindo-lhes horizontes. Admirava tanto essa profissão, que anos mais tarde, já famoso, considerava-se acima de tudo como professor de liceu.
 
Das Peregrinações ao Mundo Português
 
     Enquanto leccionava, desenvolvia a sua arte pintando aguarelas, cartazes e capas de livros. Colaborou também com a imprensa através do ABC e do ABCzinho e depois como foto-jornalista no Notícias Ilustrado, pertencente ao Diário de Notícias. Fundou, com alguns amigos, uma oficina de rotogravura, da qual passou a fazer parte Almada Negreiros, que lhes fora um dia pedir trabalho.
Para além da máquina fotográfica, continuava a utilizar a aguarela e a ilustração para retratar a cidade. Muitas das suas pinturas desta época apareceram nos três volumes de Peregrinações em Lisboa. Preocupava-se pelo rigor do desenho, mas também pela veracidade histórica do que registava. Daqui nasceu o interesse pelo estudo da caravela, pois a investigação sobre os navios dos Descobrimentos estava na moda e os historiadores recorriam a desenhadores que plasmassem em imagens as suas teorias, acabando por envolver Martins Barata. Entretanto, a sua dedicação ao ensino não diminuía, tendo viajado para Alemanha e França em 1939, para conhecer novos métodos de ensinar desenho. Ao regressar, escreveu um livro, inovador para o tempo.
     Em 1940 foi convidado a realizar dois grandes trípticos para o Pavilhão de Lisboa da Exposição do Mundo Português, retratando a conquista da cidade aos mouros e a resistência de D. João I ao cerco castelhano. O resultado final foi muito louvado, encontrando-se actualmente na Alfândega do Porto. Neste primeiro trabalho de maiores dimensões, nota-se já o rigor na reconstituição histórica, uma característica que marca a sua pintura. Para isso estudava antigas gravuras e livros, procurando descrições e pormenores como, por exemplo, os relacionados com os trajes de cada época. Martins Barata tinha tão enraizada a convicção de que a sua arte devia seguir este rumo, que sempre se manteve afastado do estilo modernista, apesar de ser amigo de muitos artistas que cultivavam essa arte. Preferia que a sua pintura reflectisse o mais fielmente possível o momento histórico que retratava, o que fez com que a sua obra, para além do valor estético, adquirisse um enorme valor documental. Era uma pintura realista e figurativa. Causou tal impacto o seu estilo, que foi convidado a participar na elaboração dos selos comemorativos de 1940. A administração geral dos CTT aceitou e agradeceu as suas sugestões, apresentadas audaciosamente, considerando o selo uma obra de arte circulante ao alcance de toda a população, com um valor didáctico e pedagógico importante.
 
Cortes medievais na Assembleia da República
 
     Em 1940 passou a ensinar no liceu Passos Manuel. Em 1943 recebeu um convite para pintar os trípticos da escadaria nobre da Assembleia da República. O espaço para as pinturas permanecia vazio, depois dos trabalhos arquitectónicos de Ventura Terra. Abel Manta pintara uns quadros, mas não gostara do resultado final. Era um ambiente gélido, que não se adequava à sua expressão plástica. Surgiu assim o convite a Martins Barata, que só aceitou depois de saber que Abel Manta concordava com a substituição. O primeiro problema era a escala, pois cada tríptico só era visto a uma distância de três metros, desde o patamar respectivo, ou então a uns vinte metros, desde o patamar oposto. Além disso, a pintura devia ser realizada a fresco, directamente na parede, uma técnica que ele não dominava. Resolveu por isso pintar grandes telas a óleo. A composição das figuras foi realizada de modo a permitir uma leitura dos pormenores a quem estivesse próximo e uma percepção vigorosa do conjunto a quem olhasse de longe. Como tema escolheu as Cortes medievais, enquadrando as personagens na época. As cores terrosas e os tons quentes contrastam com a frieza do mármore branco da escadaria. Enquanto se ocupava do projecto no Palácio de S. Bento, também desenhou notas para o Banco de Angola. Sabia compatibilizar a pintura em grandes dimensões com a de pequena escala. A colaboração com os CTT continuava, tendo realizado por essa altura o célebre selo denominado “caravela”. Dedicou-se mais tarde à numismática, tendo sido o responsável pelo desenho das moedas de 2$50, 5$00 e 10$00, emitidas entre 1963 e 1986, também com o motivo da caravela.
     Ainda mal terminara as pinturas para a Assembleia da República, quando recebeu o encargo de realizar os painéis para o átrio do Conservatório de Música, representando figuras do teatro e da música, como Gil Vicente e Bontempo. O resultado foi muito apreciado, e em 1947 a Câmara Municipal de Lisboa convidou-o a realizar juntamente com Almada Negreiros a parte gráfica da obra Lisboa, 8 séculos de História. Os dois pintores dividiram as tarefas. Martins Barata desenhou as reconstituições dos acontecimentos do passado e Almada concebeu a capa e as páginas de abertura dos capítulos. A obra foi um êxito, apesar da reprodução litográfica ser uma pálida sombra das pinturas originais, que se encontram no Museu da Cidade. Entretanto, nesse mesmo ano de 1947, aceitou abandonar, com pena, a carreira de professor para assumir o cargo de consultor artístico dos CTT, uma função que exerceu até ao limite de idade. Chamou muitos artistas para colaborarem com ele, revolucionando o conceito de arte postal. O selo português começou a ser mais procurado por coleccionadores e ganhou diversos prémios de filatelia. Martins Barata também conseguiu que os artistas começassem a ser melhor remunerados pelos seus trabalhos filatélicos. Por fim, nesse ano de 1947, obteve o 1º prémio em aguarela do Salão de Lisboa e também da Sociedade Nacional de Belas Artes.
 
Altar em Roma
 
     A partir de 1950, a pintura a fresco começou a tornar-se a técnica onde Martins Barata melhor exprime a sua arte. As circunstâncias foram decisivas para esse facto. A cristandade decidira oferecer a Pio XII a construção de uma basílica em Roma, no bairro Parioli, como agradecimento pelo papel que desempenhara na II Guerra Mundial contra o regime nazi. Além disso, era mais uma forma de comemorar o Ano Santo convocado para esse ano. Cada país contribuiria monetariamente e os italianos realizariam as obras. Portugal ficou responsável pelo financiamento do altar do lado esquerdo do transepto, representando Nossa Senhora de Fátima, de quem Pio XII era muito devoto. No entanto, o governo português impôs como condição que o trabalho fosse executado por artistas nacionais. Depois de longas negociações, os italianos cederam. Jorge Barradas realizaria o frontal do altar, Leopoldo de Almeida esculpiria a estátua de Na Sa de Fátima e Martins Barata pintaria os 11 metros da parede que envolviam a imagem. Como a pintura tinha de obrigatoriamente ser a fresco, começou a estudar os antigos tratados de autores renascentistas como Cenninni. Depois dos esboços realizados em Lisboa, foi para Roma, levando como único ajudante um dos filhos. Não foi calorosa a recepção dos italianos, pois era o único estrangeiro. No entanto, ficou muito amigo do responsável pela decoração da parede do transepto oposto ao seu, pois como era veneziano, os trabalhadores romanos também o olhavam com desprezo. Para aproveitar melhor o tempo de que dispunham, resolveram, a certa altura, acampar dentro da basílica ainda em construção. A inauguração ocorreu um ano depois, sendo a obra de Martins Barata invulgar, devido à complexidade de colocar uma estátua em pedra no centro da pintura...
 
Fidelidade à História
 
Ao regressar da capital italiana, foi convidado a realizar três painéis para o átrio do Instituto Português de Oncologia. Não optou pela pintura a fresco, pois o edifício já se encontrava em serviço, mas foi já a fresco que pintou en­tre 1953 e 1954 três lanços de parede para o Palácio da Justiça de Santarém. Escolheu como tema as Cortes de Almeirim, por ser um facto histórico da região. Em 1955 executou dois quadros para o Ministério das Corporações, representando a procissão do Corpo de Deus pelas ruas de Lisboa do séc. XVI, onde desfilavam os representantes dos ofícios. A recriação da procissão seguiu fielmente as antigas descrições e o resultado foi um sucesso. Infelizmente, os quadros desapareceram em 1975 do Ministério da Agricultura, onde se encontravam desde a extinção do Ministério das Corporações. Em 1956 voltou a trabalhar com Almada Negreiros, a convite do Tribunal de Contas, que desejava seis quadros evocando a sua história. Almada realizou três quadros com personagens individuais e Martins Barata pintou os outros três sobre a História do tribunal. O trabalho foi muito apreciado. Nesse mesmo ano, ainda pintou o retábulo da igreja de S. Tiago, na Covilhã, com a figura do Sagrado Coração de Jesus.
     A partir de 1957, começou uma série de pinturas de grandes dimensões para os vários palácios da Justiça que se encontravam em construção. Para o de Vila Real, pintou um fresco representando a figura de D. Pedro Meneses, um transmontano, recebendo de D. João I o bastão de comando, o “aleo”, da cidade de Ceuta. A obra impressionou o público. Não se admirava apenas o sentido histórico e estético de Martins Barata, mas também o domínio técnico que ia adquirindo. Não era fácil pintar em cima de uma parede. A tinta variava de tonalidade conforme fosse colocada depois de uma hora do reboco ter sido aplicado ou passado três horas. Além disso, se houvesse um engano, a única solução era deitar abaixo o pedaço de reboco, tornar a erguer essa zona da parede e conseguir novamente tons idênticos aos anteriormente pintados. Era necessário estudar os pigmentos, a cal e a própria parede. Depois de ter realizado um fresco em 1959 para o reformatório do Bom Pastor, em Viseu, Martins Barata descobriu que em vez de desfazer simplesmente o pigmento na água, tornando a tinta líquida, como se fosse aguarela, era preferível deixar a tinta mais espessa, como um guache, o que permitia modelar a forma e controlar a cor com melhores efeitos visuais.
 
De carrinha, pelo País
 
     Em 1959 pintou para o Palácio da Justiça do Montijo A chegada de D. João IV, e para o do Porto, em 1961, O casamento de D. João I e A partida para Ceuta. Ainda nesse ano pintou para o paquete Funchal, um painel alusivo a Gonçalves Zarco, mas logo voltou aos palácios de Justiça. Em 1962 pintou o de Aveiro e em 1963 o de Olhão e Gouveia. Em 1964 realizou para a sede do Banco Nacional Ultramarino, em Lisboa, um grande quadro a óleo, enquanto completava para o Palácio da Justiça de Vila Franca de Xira um fresco sobre Afonso de Albuquerque.
     Não era fácil pintar por todo o País. No seu atelier de Lisboa executava os esboços e lia os pormenores das histórias que o inspiravam. Escolhia e preparava os pincéis e as tintas, utilizando, se possível, produtos naturais. Quando tudo estava preparado, colocava numa carrinha todos os materiais e os planos. Eram viagens cansativas, por velhas estradas, e em viaturas sem as comodidades das actuais. No entanto, mantinha o bom humor. Em 1966 realizou os frescos para o Palácio da Justiça de Seia e para o de Fronteira, onde pintou a Batalha dos Atoleiros, que considerava a sua obra-prima. Nesse ano, completou ainda um cartão de tapeçaria para o Palácio da Justiça de Oliveira do Hospital sobre Viriato.
     Em 1968 apresentou, num congresso de História Náutica, um estudo sobre a caravela, baseado na longa investigação que fizera e no seu sentido histórico. Este interesse pelo passado era o que o levava a não seguir as correntes vanguardistas, pelo que alguns críticos de arte não o valorizavam e, como raramente saíam de Lisboa, não podiam apreciar as suas pinturas espalhadas pelo País. A verdade é que Martins Barata também não procurava o aplauso da crítica. Tinha uma convicção clara do cunho artístico que desejava imprimir e foi fiel a esse estilo. O que lhe interessava era o reconhecimento de quem convivia com as suas obras. Assim, foi com imensa alegria que executou um fresco para a igreja da sua aldeia de Póvoa e Meadas. Com quase 70 anos, realizou ainda mais dois frescos para os palácios da Justiça de Castelo Branco e de Vila Pouca de Aguiar, apesar de a idade já o aconselhar a não andar a subir e descer andaimes.
 
Vasco da Gama de mão em mão
 
     Ao atingir o limite de idade, abandonou o cargo de consultor artístico dos CTT. Um ano depois, em 1969, saiu o seu último selo. Era sobre Vasco da Gama. A beleza do desenho e a colocação do percurso da viagem do navegador num pedaço de papel tão pequeno foi o final perfeito do seu trabalho na filatelia, onde realizara cerca de 30 selos.
     Entretanto, o Palácio da Justiça de Lisboa quis encomendar-lhe também um fresco. Martins Barata lançou-se à obra, mas faleceu antes de passar para a parede o desenho que estava já completamente definido. Foi o filho, que o auxiliara 20 anos antes em Roma, quem executou a composição artística do pai.
     Martins Barata morreu, mas continua presente nos seus desenhos em moedas, notas, selos e em especial, nas tapeçarias, vitrais, painéis e frescos que ainda hoje podem ser admirados em diversos locais. ■
  
O pintor (re)visitado
 
Braga
Capela da Casa Museu Nogueira da Silva, Sagrado Coração de Jesus
Basílica do Sameiro, alguns dos vitrais
 
Castelo Branco
Palácio da justiça, O juízo final
 
Covilhã
Igreja de S. Tiago, Sagrado Coração de Jesus
 
Fronteira
Palácio da Justiça, Batalha de Atoleiros
 
Gouveia
Palácio da Justiça, Moisés
 
Lamego
Palácio da Justiça, tapeçaria, Cortes de Lamego
 
Lisboa
Escadaria da Assembleia da República, Cortes Medievais
Conservatório Nacional, Dramaturgos e músicos
Instituto Português de Oncologia, Röentgen e o casal Curie
Tribunal de Contas, Episódios da sua História
Sede do Banco Nacional Ultramarino, O fomento ultramarino
Museu da Cidade, ilustrações, Lisboa, 8 séculos de História
Palácio da justiça, Mestre de Avis
Forte de S. Julião da Barra, tapeçarias, Infante D. Henrique, Chegada de Vasco da Cama a Calecute
 
Montijo
Palácio da Justiça, Chegada de D. João IV
 
Olhão
Palácio da Justiça, Viagem do caíque Bom Sucesso
 
Oliveira do Hospital
Palácio da Justiça, tapeçaria Viriato
 
Porto
Palácio da Justiça, Casamento de D. João I Partida para a conquista de Ceuta
Alfândega, Painéis da Exposição do Mundo Português
Póvoa e Meadas, Baptistério da igreja paroquial, S. João Baptista
 
Santarém
Palácio da Justiça, Cortes de Almeirim
 
Seia
Palácio da Justiça, Torneio dos doze de Inglaterra
 
Vila Franca de Xira
Palácio da Justiça, Afonso de Albuquerque
 
Vila Pouca de Aguiar
Palácio da Justiça, O decepado
 
Vila Real
Palácio da Justiça, D. Pedro de Meneses recebe o aleo
 
Viseu
Instituto de S. José, em Vila do Campo, O Bom Pastor
 
Roma
Basílica de S. Eugénio, no Bairro Parioli, Altar de Nª Srª de Fátima