Evocação de Lisboa
do século XVI
Aguarela sobre papel
54 x 80,5 cm
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Diluindo-se na distância, em impreciso apontamento, o casario de Lisboa surge espalhado pelas colinas. Numa delas, prolongando-se em declive ao longo da vertente visível da encosta, apercebe-se a demarcação da muralha do castelo. Destacando-se das silhuetas das casas, um imponente palácio situado em espaço que provavelmente corresponde ao Terreiro do Paço, apresenta uma delineação mais nítida.
O pintor focaliza particularmente o Tejo coberto de imponentes naus ancoradas das quais se destaca, em proeminência vertical, o emaranhado dos altos mastros, e de variados tipos de pequenas embarcações que circulam no meio daquelas, dando-nos a imagem do extraordinário movimento do rio neste período das descobertas. Todo esse movimento dinâmico de vaivém dos barcos que estabeleciam o transporte de pessoas e mercadorias com a cidade, é habilmente acentuado pelos sulcos circulares que provocam na água. Implicitamente, gera-se a percepção de que toda essa efervescência é consequência da prosperidade da cidade, num período em que as riquezas afluíam facilmente à capital do reino. Uma envolvência imperceptível de doce luminosidade produz uma atmosfera de paz e de tranquilidade que as contínuas movimentações das embarcações no rio não alteram, convertendo-se num elemento fundamental nessa emoção transmitida.
Cromaticamente, o artista joga com valores dentro da mesma gama tonal, intensificando-os ou diluindo-os à medida que aproxima ou afasta no espaço as imagens representadas. Em toda a composição domina uma gama de castanhos, desde a tonalidade quente de um siena até ao castanho escuro, passando por ocres e amarelos dourados. Exceptuam-se, apenas, esparsas manchas de um leve verde azulado, sugerindo a presença de vegetação nas colinas e uma breve sugestão de diáfanas nuvens.
Roque Gameiro não se limitou, meramente, a transmitir uma imagem de evocação histórica de uma situação vivida em determinado contexto epocal; evoca esteticamente, através dos valores lumínicos, a atmosfera de quadros de alguns pintores do Renascimento. O céu, no qual só usou uma leve coloração, resulta numa mancha de luz, e valoriza os castanhos e amarelos que, por sua vez, reflectem a sua tonalidade quente sobre toda a composição.
Maria Lucília Abreu
in Roque Gameiro - O Homen e a Obra, ACD Editores, 2005