OS NAVIOS DO INFANTE
E A EVOCAÇÃO PORTUGUESA
DA PARTIDA PARA A CONQUISTA DE CEUTA
Artigo publicado no Diário de Notícias de 27 de Agosto de 1960 Artigo em PDF
Três caravelas (séc. XV), duas naus (séc. XIV e XV) e uma galé (séc. XIV e XV)
Em boa hora a comissão executiva das comemorações henriquinas fez a reedição do opúsculo do comandante Quirino da Fonseca, «Os Navios do Infante». Na verdade, depois do desaparecimento deste saudoso mestre e amigo, ninguém, que nós saibamos, tomou o facho que ele tomara de Lopes de Mendonça, no empenho de dar a conhecer aos Portugueses algumas das suas glórias, simples como todas as verdadeiras glórias.
Pouco haveria a acrescentar ao pequeno mas denso, documentado e entusiástico estudo de Quirino se nele se falasse de todos os tipos de barcos utilizados pelo infante D. Henrique. Mas o seu autor, muito justamente, concentrou as suas atenções na barca e na caravela e menosprezou os outros; porque só aqueles são os navios dos descobrimentos e, especialmente o último, criação dos estaleiros henriquinos, que afinaram um antigo barco de pesca preparando-o para a navegação «quase contra o vento», sem o que não teria sido possível o devassar das costas africanas.
Foi este o maior contributo que Portugal trouxe à construção de barcos, embora outros tivesse trazido mais tarde.
Quis o Porto, como não podia deixar de ser, associar-se às homenagens a prestar ao seu filho Henrique. Como também não podia deixar de ser vai fazê-lo com a audácia e o rompante seus costumados. Decidiu-se nada menos do que a evocar a partida do infante para Ceuta em 1415, quando ele tinha apenas 22 anos, e a reconstituir parte da frota que ele mesmo organizou no Porto.
O que o Eng. Pacheco de Almada propôs fazer, metendo ombros à temerosa empresa, pareceria loucura a qualquer que não visse, através do seu sorriso calmo, uma férrea determinação. Eu creio que a vi logo que ele me deu a honra de convidar-me a orientá-lo na parte arqueológica da reconstituição; e por isso o acompanhei imediatamente na sua obra de cultura e no desinteresse do seu Patriotismo. Nenhuma consideração pode empanar o brilho do seu esforço.
Estou ainda vendo os olhos esbogalhados do Sr. Petrew, conservador do Museu Marítimo de Roterdão, quando, em Março passado lhe anunciei a ideia de em Agosto estarem na água oito navios de 1415, em tamanho natural, navegando, com as suas tripulações e dos quais nenhum ainda estava pronto, «impossível» — disse-me ele. «O senhor, não conhece o Porto» — disse-lhe eu. E os navios aí estão.
A frota que levou o infante a Ceuta foi constituída, no seu grosso, por naus alugadas ou compradas, umas dos mares do Norte, outras mediterrâneas, e por galés genovesas, das que faziam o comércio com a Inglaterra e ainda por galés e naus construídas nas margens do Douro, nos estaleiros nesse tempo mais activos de toda a costa e há muito tempo orientados por mestres de Génova.
Logo se vê não haver nestes barcos a originalidade portuguesa que veio, tão genialmente, a manifestar-se na caravela melhorada de Sagres e a somar-se à originalidade do sonho descobridor de D. Henrique.
Mas isso que tem? Pouco interessa ao valor de Gago Coutinho o ter utilizado um avião inglês ou ao de Columbano o ter usado, porventura, pincéis franceses ou tintas alemãs.
E o infante, para a expedição de Ceuta, não fez mais do que seguir a prática corrente, em todos os países, de comprar ou alugar barcos de qualquer origem e adaptá-los a fins de guerra.
Veremos depois, no século XVII, a França equipar toda a sua marinha, com navios holandeses, a Inglaterra a copiar os mesmos (a Inglaterra, essa nunca, adoptou nada no campo da construção naval que não tivesse já sido bem provado por outros, diz o inglês Holmes) e, no século XVIII, toda a gente a copiar os franceses e a Rússia a chamar italianos para os seus estaleiros. Também no século XVI, e em toda a Europa, se copiara a construção portuguesa., especialmente estimada e espiada, como o demonstrava Guilleux La Roërie, grande mestre da arqueologia, naval num estudo inédito, que o Instituto para a Alta Cultura, por minha humilde proposta, trazida de Paris e vigorosamente secundada por Quirino da Fonseca, editaria em 1940 se a guerra não tivesse sobrevindo e destruído também este belo projecto.
Podemos pois seguir confiadamente, para a evocação portuense, documentos estrangeiros relativos à época da expedição, porque não os há nacionais, e se os houvesse seriam semelhantes àqueles Os tipos seriam iguais e os mareantes também, da pesca ou da cabotagem, e não seriam melhores, nem mais valentes do que os nossos pescadores de agora, seus legítimos herdeiros no martírio do trabalho, na fé, na simplicidade e até na superstição. Foram eles os tripulantes dos navios, e nestes, aqui como em toda a parte, conduziam os soldados, que sobre eles combatiam, exactamente armados e equipados como se em terra combatessem.
A marinha de guerra «propriamente dita», na precisa frase de Van Konijnenburg, só apareceu, como se sabe, no século XVII.
As naus dos séc. XIV e XV não são muito frequentemente representadas fora do meio especialista. Por isso, no receio de que os barcos feitos agora pareçam um pouco insólitos a algumas pessoas, pedem-me os organizadores da reconstituição uma breve justificação dos mesmos.
Essa é uma das razões destas palavras.
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Como seriam as naus e as galés da frota de Ceuta? O problema é sedutor, mas difícil no que se refere às naus; bem mais fácil no que respeita às galés.
Os conhecimentos actuais não são da mesma densidade em relação às diferentes épocas da História. Todos nós podemos saber um pouco como eram os barcos egípcios, gregos e romanos da antiguidade. Saberemos muito melhor como eram certos barcos-esplanadas do séc. I porque conhecemos os próprios barcos de Calígula, que estavam afundados no lago de Nemi e foram postos em seco (e barbaramente destruídos, na guerra). Conhecemos muito mal os barcos dos séc. XII e XIII, mas conhecemos muito bem alguns do séc. IX porque estiveram debaixo da terra até há pouco. Iremos conhecer muito bem um navio sueco do começo do séc. XVII, agora redescoberto, quase intacto, no fundo lodoso do porto de Estocolmo.
E temos o recurso da interpolação, quando ela é justa, dada a histórica inércia da construção naval. Assim, se conhecermos dois barcos semelhantes em duas datas diferentes, podemos aceitar a existência dum barco semelhante entre aquelas datas.
É este o caso da época da expedição de Ceuta. Mas também devemos lembrar-nos de que essa data se situa precisamente num hiato dos mais misteriosos da história do barco, pois foi nesse período que se gerou a nova concepção do veleiro.
A náu, no começo do séc. XV, e desde séculos, era um navio bojudo e um tanto gêbo, muito largo em relação ao comprimento, com um enorme mastro a meio, quase sempre solitário; com este se cruzava uma grande verga, bem horizontalmente, da qual pendia uma vela tão grande que o vento a embolsava e deslocava fortemente para vante o seu centro. Durante mais do cinquenta anos continuou a haver naus assim. A sua proa era muito elevada, para que nos ataques a outros barcos os sobrepujasse facilmente. Eram barcas quase ingovernáveis com vento pouco propício, como se viu no cerco de Lisboa e, em frente de Ceuta, com alguns da própria expedição de 1415.
Mas, nos primeiros vinte anos do século de quatrocentos, começa uma das grandes viragens da construção naval. Aparece o navio de 3 mastros, com um sistema de velas que deveria, na sua essência, manter-se até ao séc. XIX, permitindo, por novas manobras, um domínio e uma certeza de navegação até essa altura desconhecidos num navio de alto bordo sem o auxilio de remos.
As notícias desse aparecimento são raras e vagas, mas é possível que já houvesse algum navio desse tipo no tempo da trota de Ceuta, embora eles só voltem a ser de uso corrente nos fins do século. A artilharia e a bússola, aparecidas na marinha, no seu prudente e costumado atraso, pelas mesmas alturas, com o enorme alargamento de possibilidades que trouxeram, aliam-se à nova concepção e influem decididamente na forma do casco; este torna-se mais «oceânico», alonga-se e, embora com os mesmos dois castelos, baixa o de proa e, eleva o da pôpa, para melhor emprego da artilharia. São desta feição as naus de Vasco da Gama, cuja forma, tão vulgarizada melhor ou pior, se afasta assim substancialmente das naus correntes do tempo de D. Henrique.
Os planos das naus que tivemos o gosto de elaborar e oferecer à bela iniciativa portuense, são essencialmente baseados num quadro de Jaime Serra, de 1360, no qual se representa uma nau mediterrânea que julgamos inédita nos livros e tratados de arqueologia e analisámos no museu de Vich, e no preciosíssimo modelo catalão de Mataró, ex-voto executado em 1450, e agora no Prinz Hendrijks Museum de Roterdão, onde tivemos há meses a sorte, provocada, aliás, de o poder estudar, directa e demoradamente. São muito semelhantes os dois documentos e, por isso, nos parece ser absolutamente verosímil que em 1415 existisse tipo idêntico de nau.
Foi dessa base que partimos acompanhados pela rica documentação do Museu de Barcelona e pelos excelentes estudos feitos sobre semelhantes barcos por Winter.
Preferimos este tipo ao tipo evoluído pelas razões expostas e também porque o navio novo já anuncia, como os descobrimentos, a Renascença. E a expedição de Ceuta tem ainda carácter claramente medievo; os seus navios devem acompanhar esse espírito.
Para a galé do século XIV ainda o documento mais seguro são os frescos de Siena, bem melhores do que certa reconstituição, aliás muito bela, do Museu Naval de Madrid. Mas nós vemos também, nos quadros do veneziano Carpaccio, como os caracteres das galés dos fins de quatrocentos não se afastam quase nada dos daquelas, mantendo a sua forma rasa e plana, ainda sem a graciosa curva que apareceu no século XVI. A galé é um barco de remos, tão vulgarizado e de anatomia tão descarnada que não é difícil a sua reconstituição, para a qual também os estudos do Dr. Sottas são um bom auxílio.
Quanto à realização dos barcos é natural que não possa perfilhar algumas das interpretações dadas a certas linhas do seu exterior visível pelo excelente mestre que as construiu. E isso compreende-se. As obras vivas das barcos eram do seu conhecimento, mas a parte emergente não. Nós não devemos, em todo o caso, exigir mais de navios feitos para um espectáculo passageiro e nocturno e construídos em condições espantosas de rapidez e economia.
Trata-se de uma evocação e nem com oito navios se pode fazer a reconstituição integral de uma frota de mais de duzentos barcos nem mesmo naqueles é possível um rigor maior, uma diferenciação de origens e uma emenda de desvios sem despesas e demoras incomportáveis.
A galé realizada é adaptada de uma barça do Douro e mesmo com essa servidão, tem um aspecto muito de aceitar-se. Todo o conjunto da flotilha, aliás, nas suas linhas gerais, é perfeitamente verosímil na época, como qualquer pessoa informada o verificará.
Não quiseram os organizadores da frota que nela deixasse de figurar uma caravela ou duas. E o mestre construtor, Armando santos, partindo apenas de um perfil representado numa pequena gravura moderna, fez um trabalho admirável. O mestre diz-se alheio «a cálculos matemáticos e à história» e «que só sabe as regras», pois só com essas regras da tradição ele fez o barco melhor, a meu ver, de entre todos. E porquê? Porque a caravela é, de entre todos os barcos ali desejados, o que mais se aproxima do veleiro de pesca, que o mestre conhece, como poucos, por dentro e por fora. E deu-lhe uma verdade, uma autenticidade que nunca um historiador e muito menos um engenheiro lhe poderia dar sem o seu dominante concurso.
É talvez pena que a gravura de onde decidiu partir seja de um desenho um tanto suspeito e, em qualquer caso, de um tipo de uma época muito posterior a da expedição de Ceuta. Mas é lindo e impressionante esse navio agora feito no Porto.
De todos os modos é uma vitória completa a evocação henriquina, realizada pela Invicta, com a sua unidade de sempre e com o seu entusiasmo moço e contagioso.
Temos de felicitá-la e de agradecer-lhe o exemplo magnífico.