OS PAINÉIS DE MARTINS BARATA
PARA A ESCADARIA NOBRE DA ASSEMBLEIA NACIONAL
Por Luís Reis Santos
Numa época de profunda unidade espiritual e artística, tal como o século do Génio de Florença que foi o percursor da arte moderna, as grandes pinturas a fresco deviam, naturalmente, constituir a lógica e harmónica ornamentação das paredes amplas dessa arquitectura que, apesar de ser coeva do gótico francês, conservava ainda caracteres essenciais do românico tradicional.
Essa persistência de certos aspectos do estilo românico, verificada em Portugal até aos séculos XV e XVI (!) explica, de algum modo, a existência de centenas de painéis de frescos nas igrejas do País, conhecidos apenas através de inventários feitos durante os reinados de D. Manuel I e de seu filho D. João III.
Como arte decorativa ao serviço da arquitectura, a pintura mural evoluiu desde então até nossos dias, perdendo por vezes a sua razão de ser ou buscando o seu verdadeiro significado, quer dizer caminhando para a decadência, quando desempenhava um papel independente, divorciado da concepção arquitectónica e do ambiente por ela criado, ou para o renascimento, quando se integrava no plano geral da obra, subordinada à ideia de conjunto com a justa medida e a necessária harmonia.
O problema da pintura mural em nossos dias é, nas artes decorativas, dos de mais difícil resolução. Vivemos numa época de complexidade e de crise em que as ideologias passadas se baralham, as mais diversas correntes artísticas se chocam e se confundem; raramente se encontram e colaboram artistas plásticos que possam e saibam dar às suas obras de parceria a coesão necessária, não apenas na forma, mas e principalmente no espírito.
A confusão artística traduz bem presentemente a desordem social. O que não quer dizer que, por vezes, no meio da baralha, não surja um ou outro caso raro de unidade artística entre arquitecto e colaboradores, vivendo no mesmo clima espiritual e criando conscientemente com idêntica ideologia.
O problema da realização dos painéis decorativos para a escadaria nobre da Assembleia Nacional é, no género, dos mais complexos que têm surgido entre nós. São tais as imposições do programa que dificilmente pode o artista escolher com liberdade os caminhos em que possa afirmar bem as suas preferências e revelar plenamente a sua personalidade.
De um neo-classissismo retardado, digerido com a lentidão de um ruminante, a reconstrução do velho Palácio do Congresso em que paira o espírito racional de Ventura Terra, é apesar da pureza das linhas e da relativa harmonia conseguida no conjunto, típico produto de fim de século, num interregno de insuficiência e calmaria, de inconformismo e inquietação criadora.
Exigir de um artista do nosso tempo, consciente das aspirações da época actual, que sinta aquele momento, compreenda o verdadeiro significado daquela arquitectura, e dentro do seu quadro, dignifique os objectivos espirituais da arte, realizando o que os pintores contemporâneos de Ventura Terra não podiam conceber nem executar, é realmente um programa transcendente a que pouquíssimos podiam subordinar-se.
Além do estilo, outros predicados se exigem nesta obra: o da composição em harmonia com a instituição, o edifício e o local, para ser vista desde a parte inferior da escadaria até aos pisos superiores, e nestes, simultaneamente, a uns três ou vinte metros; o das escalas relacionadas com os elementos arquitectónicos e escultóricos, as pilastras, os vãos e a figura humana; o da luz e da cor, de acordo com os dois grandes janelões laterais que distribuem luz desigual pelas várias horas do dia, bem como as tonalidades frias da pedra e as notas mais intensas de cor das portas e da cobertura da escadaria, o candelabro e os bronzes.
O processo técnico da pintura, esse deveria merecer especialíssimo cuidado já pelo caracter da obra arquitectónica, já porque os painéis podem ser vistos a distâncias que andam aproximadamente na proporção de um para sete.
Jaime Martins Barata resolveu este problema de arte decorativa de forma magistral.
Pelo estilo integra-se nas ideias de equilíbrio e harmonia que constituíram o principal objectivo de Ventura Terra e de quem ultimou o seu projecto, excedendo todavia, sem convencionalismos fatigantes, a concepção inicial da arquitectura, em dignidade e força.
Sem notas gritantes de linha ou de cor, estes painéis têm a calma, a serenidade que melhor se coaduna com a ideia de conjunto que pode querer-se obter.
A composição de cada tríptico desenvolendo-se dentro de dois triângulos, consegue por um lado o equilíbrio material acompanhando as linhas dominantes da escadaria, e por outro a elevação espiritual, fazendo convergir os conjuntos centrais, num para a figura estável do Rei, e noutro para a imagem luminosa de S. Vicente, padroeiro de Lisboa.
No tríptico das Côrtes de D. Afonso III, o Clero, a Nobreza e o Povo formam a sólida base da composição, numa compacta massa de valores, de vontades conscientes e firmes, traduzidas pela atitude estática e pela verticalidade das figuras.
A harmonia cromática, feita de tonalidades pálidas, iluminadas pelo grupo régio do painel central, encontra justas consonâncias nas notas brancas e doiradas das capas, dos mantos, dos pluviais e das casulas. Aqui e acolá, entre os tons surdos e terrosos, as cores passadas das roupagens e dos acessórios, surge o eco da nota de cor soltada pela signa real.
Mais se acentua ainda a força dos símbolos no tríptico da Agricultura, do Comércio e da Indústria, em que a sobriedade dos painéis laterais ajuda a impor o núcleo dos obreiros da Nação, constituído pelos trabalhadores da terra e do mar, pescador e mesteirais em que se destaca a mancha clara do arquitecto, construtor e representante da arte e da ciência medievais.
Admirável o painel da direita deste tríptico, retractando mercadores com suas fazendas, sedas, jóias e especiarias, naus do Norte e do Levante, e principalmente, o da Agricultura, trecho do solo pátrio, tendo ao fundo uma planície alentejana dominada pelo castelo feudal, e, nos primeiros planos, o robusto sobreiro, o lavrador, o ganhão com o arado do tipo romano e ainda usado, o semeador, toiros mirandeses, e a sólida figura do zagal com a sua cabrinha machuna.
Martins Barata afirma-se, nesta obra, artista de excepcional probidade, que possui um pensamento elevado e sabe traduzi-lo plasticamente, com o processo técnico mais adequado, o desenho robusto e firme, a pintura de convicção e sinceridade que afastam desdenhosamente preocupações doentias e afectações petulantes.
Da nobreza da composição e da simplicidade larga da factura, com a justa medida na maneira de pincelar e modelar, resulta a imponente afirmação da força consciente deste povo que construiu uma forte Nação e um grande Império.