OS PAINEIS DE MARTINS BARATA - NOTAS DE UM VISITANTE CURIOSO
Por Franz-Paul Langhans
Quem percorresse os corredores da Câmara Corporativa, observando atentamente a extensa galeria de tipos humanos que Martins Barata desencantou no seio da população portuguesa e projectou depois no papel, cheios de vida e de verdade; quem percorresse essa estranha galeria de expressões, que faria a felicidade de um Lavater, e fosse notando o engenho do Artista e do seu sopro criador, pressentido em cada traço e em cada sombra; quem se embrenhasse por tão extraordinária teoria de semblantes e fosse marcando o ar de todos eles, no meio da maior variedade de aspectos e de idades, e o fizesse não tendo somente visto, mas também vivido com a alma e o coração… quando se encontrasse a olhar para os painéis, no meio da clara e grandiosa escadaria nobre do Palácio de S. Bento, verificaria isto: que os seus dignos convivas da há pouco – tão espontâneos e anímicos – petrificaram-se dentro da sua investidura histórica.
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Num conjunto pictórico admirável de figuras e de quadros – sem dúvida o melhor saído de pincéis portugueses depois das tábuas de Nuno Gonçalves – o políptico da escadaria da Assembleia Nacional é uma obra prima de composição. Solidez das figuras, quase estáticas. Perfeito ajuntamento dentro de cada painel. Sábio efeito de contraste dos claros e dos escuros e uma habilíssima distribuição dos pontos de luz intensa.
Todavia, levado pela louvável preocupação do sóbrio e do discreto, do carácter monumental e arquitectónico da obra e pelas exigências da luz local, o Artista sujeitou as cores da sua paleta a uma escala branda que, ao serem modeladas, deram os seguintes efeitos: uniformizaram os ambientes cromáticos, quer se tratasse de interiores ou de vistas ao ar livre; produziram geral abrandamento das expressões humanas; envolveram toda a obra num tom claro sem brilho.
Afiguram-se de relevo os dois últimos efeitos.
A chama vital que se revela nos estudos fisionómicos esmoreceu. Nalguns casos, poder-se-ia mesmo dizer extinguiu-se, prevalecendo avassaladoramente a composição sobre cada um dos seus elementos.
Por um subtil toque do Artista, os painéis adquiriram o tom de luz igual em intensidade ao do meio luminoso onde tinham de ser expostos. Como é bem de ver, não se trata dos efeitos de luz próprios da contextura da obra, mas da luz cromática reflectida de todo o conjunto.
Repare-se que a pedra branca da escadaria e da moldura dos painéis, banhada, durante o dia, de luz abundante, produz uma claridade intensa mas sem brilho, que o Artista não procurou compensar, antes intencionalmente reforçou.
Não admira que a forma prevalecesse sobre a cor e a arquitectura dominasse a pintura, pois sujeitaram-se os valores cromáticos aos limites impostos por um conceito.
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As figuras – graves como convém ao tema – têm a robustez de peças talhadas em madeira ou esculpidas em pedra. Raras são animadas de movimento. As que o são, apresentam-se de tal maneira discretas e cuidadosas que se julgariam paradas. Veja-se o lavrador do tríptico dos misteres; agarrado à rabiça do arado, assenta na terra fina vara de aguilhão, vertical que nem fio de prumo. O semeador acompanha-o devagar, lançando a semente como quem não quer a coisa. O descarregador da Ribeira, que se vê no painel dos mercadores, presume-se também em movimento; na faina, como que abraça o seu carrego para, cauteloso, o depositar em lugar seguro.
No conjunto, a multidão que figura nos dois trípticos mostra ter suspendido os seus movimentos, as suas conversas, as suas discussões, os seus trabalhos, para aguardar.
A solene procissão dos altos dignitários da Igreja quase parou o seu andamento majestoso.
A nobreza guerreira suspende as arrogantes narrações das suas façanhas e olha altiva.
Os procuradores dos concelhos nas Côrtes e os membros da Cúria voltam as costas ao Rei para ver quem vem lá.
Os misteres rodeiam o arquitecto, voltam as costas ao altar do patrono olissiponense, chamam a si um legista e preparam-se para uma pose simbólica.
A gente do porto e do comércio, não deixando de todo os seus afazeres, espera também e, por parte do rico mercador, com aquela segurança e afoiteza de quem não deve nada e antes tem a receber.
Só os da lavoura parecem alheados de tudo no afã do amanho das terras exceptuando, talvez, um ganhão curioso que espreita por detrás do homem do arado e do semeador.
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Se, no tríptico do lado da Assembleia Nacional, as Côrtes de Leiria de 1254 serviam às mil maravilhas para representar a Nação pelos três estados do reino, no dos misteres o tema pictórico foi escolhido sem se reportar a um acontecimento histórico ou a qualquer instituição política, fixou-se simplesmente numa época. O Artista, levado pela preocupação do equilíbrio e pelo desejo de conferir à obra a máxima amplitude representativa, recorreu a uma fórmula individualista: em cada uma das figuras simbolizar as profissões de nomeada no século XV.
Julga-se ter sido a intenção do Autor – e as actuais formas de representação nacional prestam-se a isso – ir buscar as formas primitivas dessa representação e nelas inspirar o tema do seu trabalho decorativo. Assim aconteceu com o tríptico da Assembleia. Inspirou-se nas Côrtes de Leiria. Um acontecimento histórico, um acto político e um organismo básico de um Estado nascente. Porque não seguiu o ilustre Artista um critério semelhante com os painéis da Câmara Corporativa?
Escusava evidentemente de recorrer a mais um episódio histórico, visto que o que se pretendia era representar a Nação nos seus aspectos técnico, profissional e económico. Contudo, parece que não desequilibraria o arranjo pictórico – como prova o tríptico das Côrtes – a referência a certos cargos ligados à vida das antigas profissões como o Juiz dos Vinte e Quatro, os quatro Procuradores dos misteres e alguns dos vinte e quatro dos misteres com as suas bandeiras, castelas e invenções. Um letrado assistiria ao ajuntamento, como também era de uso.
Deste modo praticava-se um acto de justiça para com uma instituição – verdadeira antecessora da Câmara Corporativa, guardadas as devidas proporções e a distância no tempo – que durante séculos protegeu os interesses das classes trabalhadoras e prestou assinalados serviços à Nação.
Todo este arrazoado foi um simples desabafo à margem da Arte e em comentário ao painel central. Na verdade quase bastava mudar o nome e as insígnias às figuras. Nas suas linhas fundamentais a composição seria a mesma.
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Comparando os dois trípticos, o dos misteres sobressai pela admirável distribuição de luz em cada um dos seus painéis e pela harmonia das zonas iluminadas, quando tomadas no seu conjunto.
O fundo luminoso do painel dos mercadores conjuga-se com o fundo iluminado do painel da lavoura. O tom claro do blusão do semeador, tem o seu correspondente no descarregador da Ribeira. O brilho do rico tecido que o mercador tem sobre os joelhos encontra a sua réplica na luz que banha o arado e o chão compreendido entre este e o pastor. O painel do centro tem ao meio uma zona tão harmoniosamente iluminada que encanta a vista. Este tríptico como obra decorativa é magnífico.
No das Côrtes, entre os painéis já não existe uma harmonia absoluta. Os laterais, que decidem o equilíbrio do conjunto, não se ajustam com rigor.
O painel do clero, considerado em si mesmo, é uma obra decisiva, tanto no ponto de vista da luz como no contraste entre os claros e os escuros.
Conquanto pelo lado da avaliação espiritual o que interessa apanhar numa cena plástica seja o seu todo de cores, de luz e de sombras, no caso do painel do clero não se pode deixar de fazer referência a um pormenor notável: ao grupo dos tocheiros. Repare-se no canto superior esquerdo e veja-se como o halo bruxuleante da chama das tochas quebrou a mancha escura do pálio e equilibrou o complexo plástico, evitando o contraste com o fundo claro do céu. Ao observador atento este pormenor prende logo a atenção, por solucionar um problema local e fazer surgir outro no plano do conjunto.
Entre o painel do clero e o da nobreza que lhe corresponde não há uma relação de tonalidades com o mesmo equilíbrio que se descobre nos painéis laterais do tríptico dos misteres.
No painel da nobreza, as bandeiras heráldicas e o castelo formam um grupo que ocupa quase toda a parte superior, só deixando uma nesga do céu no lado esquerdo, com a quantidade de luz suficiente. O grupo estende-se para o lado direito e termina numa outra nesga de céu mais baça e confundida com a silhueta esbatida de uma das torres do castelo.
Para animar a mancha desta massa e ao mesmo tempo enquadrar o painel no tríptico, o Artista, segundo se presume, deu mais brilho e luz a uma das bandeiras – a que está colocada à direita, fora do feixe – pretendendo fazer coincidir esta gama de tonalidades com a projectada pelo halo dos tocheiros procissionais; porém o toque não foi o bastante para vivificar aquele núcleo plástico, quebrar o tom baço dominante e harmonizar o conjunto.
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Diga-se o que se disser sobre ela, a obra de Martins Barata admira-se no grandioso do políptico, mas vive-se sobretudo na colecção incomparável dos seus estudos, que fez dizer a alguém, enquanto descia a escadaria do Palácio da Assembleia Nacional ainda sugestionado por tão pujante criação de Arte: “Verdadeiramente isto marca uma época!…”
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Para terminar estas impressões de visitante, permita-se uma lembrança. Porque não publica Mestre Martins Barata a reprodução policromica dos painéis, com todos os seus estudos, acompanhados de uma nota, tanto quanto possível circunstanciada, sobre os trabalhos técnicos e históricos a que teve de proceder? Creia que nem só artistas e eruditos se regozijariam com isso; simples curiosos, amigos das coisas belas, ficar-lhe-iam muito reconhecidos.
Franz-Paul Langhans