Título: A Última Obra do Poeta Afonso Lopes Vieira
Autor: Afonso Lopes Vieira (1878-1946)
Publicação: [Lisboa] : CTT, imp. 1948
Ilustrações de: Jaime Martins Barata (1899-1970)
Descrição física: 76 p. ; 22,5 x 17 cm
Informação: Biblioteca Nacional de Portugal
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Ver:
1947-02-07 - Diário Popular
1948-02-14 - Região de Leiria
1948-02-15 - Notícias de Viana |
1948-02-18 - Novidades, por J. M. A.
1948-03-16 - O Século 1948-03-19 - A Voz do Domingo 1948-12-08 - Diário da Lisboa - Postais
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A última obra do poeta Afonso Lopes Vieira
Pequena história de como surgiu a ideia, por Martins Barata
PUBLICAM-SE neste livrinho os textos escolhidos para os bilhetes postais das colecções que Afonso Lopes Vieira ideou e as quais deu os nomes de «Conheça a sua Poesia» e «Conheça os seus Prosadores».
Como surgiu essa ideia e como ela se corporizou é a pequena história que pode ler-se nas breves linhas que se seguem, escritas por quem, da parte dos C.T.T., acompanhou nesta realização o grande e saudoso Português.
Certo dia de 1945, em conversa ocasional com Afonso Lopes Vieira, disse-lhe que estava encarregado pela Administração Geral dos C.T.T. de orientar as novas séries de bilhetes postais ilustrados, com motivos Portugueses e pedi a sua opinião sobre alguns monumentos que interessaria focar em especial. Respondeu-me com vivo interesse; mas, de repente, deixou os monumentos e, com aquela fala ligeiramente hesitante e desprendida que lhe dava tempo para achar a expressão justa e dizê-la sempre em ritmo belo e saboreado, disse-me isto: «Se você estiver com o Administrador Geral pergunte-lhe se quer fazer uma colecção de postais à semelhança dos “CONHEÇA A SUA TERRA”, com uma selecção de poesias. Uns vinte postais chegam. Eu podia fazer a escolha dos textos».
Logo lhe declarei que transmitiria o seu desejo. Não sei se ele viu o pouco entusiasmos com que lho disse. Na verdade, eu não duvidava do bom acolhimento da Administração Geral — mas, por motivos óbvios — e, principalmente, pelo meu desconhecimento das pessoas — não estava tão seguro do interesse das instâncias superiores. Nessa altura, como ele também — e como mais tarde me disse — eu não imaginava «o que o Estado pensa da poesia».
Rapidamente, porém, o meu optimismo apareceu e se consolidou, e, embora bastante tarde, o dele também. Porque a resposta superior veio, com a agradada aceitação da ideia e a sugestão dela ser alargada a uma outra colecção — a dos prosadores. Para dirigir essa colecção era convidado o ilustre criador da primeira.
Foi claro para mim que esta concordância superior, tão rápida e larga, se deveu à compreensão com que o Sr. Administrador Geral viu o valor e a projecção enorme desta iniciativa.
Quando dei a Afonso Lopes Vieira a notícia da rasgada aceitação da sua ideia — recebeu-a com a sua fleuma habitual. Mas senti bem que lhe tinha dado uma grande alegria. Eu também a tive.
Aceitou com gosto, e «em principio» — ainda com alguma desconfiança no resultado. Estávamos a 15 de Agosto, mandou-me dizer que ia trabalhar e que esperava obter os textos dentro de algumas semanas. Mas, apenas dois dias eram passados já me escrevia: «A tarefa é tão fácil que lhe envio aqui os primeiros doze originais, reservando para de aqui a dias os restantes. Eu tinha isso no sangue»...
Vieram todos os originais com rapidez. «Sempre tive a mania de pôr impaciência nas coisas que me proponho fazer, embora depois as reflicta como posso». Esta sua frase define luminosamente a intensidade de colaboração, o vai-vém incessante das provas, sucessivamente vistas, revistas, alteradas, várias vezes substituídas. Não demorava nunca as respostas «para não ter a impressão de atrasar», e pedia igual presteza da minha parte, querendo sempre, com as provas que lhe mandava, a minha crítica, tão pobre e desautorizada.
A tarefa não era fácil como lhe parecera a princípio, pela exigência da síntese e pela necessidade de se equilibrarem os ciclos literários. Foi levado, por essas necessidades, a alargar a vinte e cinco o número de postais de cada colecção.
Acompanhando algumas alterações, que estavam longe de ser as últimas, escrevia-me: «Não sei se agora atingimos um equilíbrio perfeito. Em trabalhos destes é preciso sofrer até ao fim — para não deixar, aliás, de sofrer até no fim».
E é bem certo. Mostrou-me ele, duma vez, em S. Pedro de Moel, um volume da «Paixão de Pedro o Cru» que estava anotando e corrigindo quase página a página; a 2ª edição sairia mais depurada, mais simples ainda na sua forma literária. Na verdade, «punha paciência e punha reflexão» nestas coisas. Era um Artista. Também como Artista — e não como mero historiador da literatura — ele tratava agora da selecção dos textos para os postais, com a mesma impaciência e a mesma demorada reflexão com que tratava os seus livros.
Quando aludi à possibilidade dos bilhetes postais se imprimirem a duas cores, supôs por esse facto que iria fazer-se uma edição de luxo e alarmou-se. Isso desnaturava o seu pensamento. A edição que ele ideava era análoga a da serie «Conheça a sua Terra», de postais ordinários — aliás também a duas cores. Queria uma edição para o Povo, e não uma edição luxuosa.
A impressão a duas cores estava, porém, nas possibilidades da Casa da Moeda e sem agravamento do custo — e permitia uma apresentação mais cuidada. Concordou, e procurámos explorar essas possibilidades. De estudo em estudo, chegou-se à apresentação definitiva. Em vez do selo «Caravela» foi aceite, superiormente, ainda uma ideia de Afonso Lopes Vieira: a da criação de selos especiais (apenas para esta edição) com as cabeças de Camões e do Padre Vieira «que se ligam à Poesia e à Prosa portuguesas, como Padroeiros».
A impressão foi feita na Casa da Moeda, decisão tomada com o maior agrado de Afonso Lopes Vieira, que estimava muito os estabelecimentos gráficos oficiais.
A composição foi porém feita, e por sua lembrança, na Imprensa Nacional, onde ele era especialmente querido dos tipógrafos, com os quais convivera quando da edição nacional dos Lusíadas, por ele criada e dirigida.
Afonso Lopes Vieira era um visual. «Príncipe de visuais» lhe chamou o Dr. Celestino Gomes e com razão. A beleza das suas frases era sublinhada pela aristocracia heráldica da escrita. Um vulgar bilhete saía da sua mão com uma distinção de proporções e certa especial elegância de talhe caligráfico que ele cultivava com satisfação.
O seu gosto pelas graças da tipografia clássica levava-o a preferir os caracteres serenos dos Elzevires, dos Garamonds e dos Bodoni a quaisquer outros. O Elzevires da edição Nacional dos Lusíadas era o seu grande favorito. Esse mesmo foi adoptado e se foi buscar à Imprensa Nacional, e nele se compuseram os textos que serviram para o estudo e as revisões.
Infelizmente as matrizes da Imprensa Nacional estavam cansadas; e quando se quiseram obter provas afinadas para o «fotolito» da Casa da Moeda, verificou-se que elas não estavam nas condições requeridas para um bom trabalho. Havia vantagem técnica em novas composições.
Mas Afonso Lopes Vieira já nos tinha deixado, nessa altura. E aquelas provas tinham sido tão revistas, tão amorosamente estudadas, pesadas e sentidas por ele, que houve um grande escrúpulo em as repetir. Continuou-se o trabalho com elas, beneficiando-as, uma a uma, por transportes fotográficos sucessivos e retoques minuciosos da letra. Isso explica em parte — o resto deve-se a excesso de trabalho na Casa da Moeda — a demora havida numa edição que todos tinham o maior empenho em fazer sair depressa.
Vão sair agora os postais, e saem exactamente, rigorosamente, como foram vistos por Afonso Lopes Vieira.
A um mês da sua morte, quando mandava novas correcções às provas, em bilhetes postais onde apunha o seu timbre famoso «o búzio e a vieira», carimbados a verde e dourados por sua mão, como certo lápis preferido, escreveu: «desejaria ver provas corrigidas nestas derradeiras emendas. Mas haverá emendas derradeiras?»...
Deus quis que houvesse. Foram essas mesmas.
Foi este o último trabalho de Afonso Lopes Vieira, trabalho apaixonado, sentindo bem no bilhete postal a possibilidade de uma irradiação e de uma penetração no Povo que o Livro e a Revista não possuem. Foi a sua última obra que ele não escreveu, mas que não deixou de ser, por esse facto, obra de um Poeta.
Falava muito nesta tarefa aos seus íntimos, e com orgulho de ver lançar a ideia da vulgarização da poesia, pela primeira vez no Mundo, pela Administração Postal Portuguesa.
De S. Pedro escrevia-me: «Foi o único trabalho, este dos postais, que consegui fazer desde que vim e me soprou um vento tormentoso, até em assuntos literários, para completar o quadro desagradável. Mas o prazer desta colaboração compensa o mau estilo doutras em que imprudentemente (e por motivos patrióticos) me deixei cair e me indispõem a alma e o estômago».
Não esmoreceu este interesse até ao fim da sua vida. Nas vésperas de nos deixar, mal dando acordo de si, perguntava ainda a quem lhe assistia «se tinham telefonado e dito como iam os postais»…
Foi esta a última obra de Afonso Lopes Vieira. E entre os serviços por ele prestados à sua Pátria, não foi decerto o mais pequeno.
Afonso Lopes Vieira foi, acima de tudo, um Artista, no mais puro, nobre e alto significado desta palavra. A obra de Arte é sempre uma obra de carácter. E poucas pessoas me foi dado conhecer com mais vincada personalidade do que Afonso Lopes Vieira.
Nesse carácter tão marcado, a qualidade que sempre me pareceu mais evidente foi a independência.
Frequentou Coimbra, quando algumas correntes literárias francesas — que sempre se têm reflectido entre nós — arrastavam a mocidade entusiasmada.
Só ele foi excepção. Só ele, contra a maré, se dedicou ao estudo gratuito e gostoso dos Clássicos. Vem já desse tempo a sua dedicação e o seu amor a Camões, amor e dedicação que se foram afirmando, cada vez mais, até ao fim da vida. Foi em Camões e Gil Vicente, «seu mano», como ele dizia, que se corporizou o seu amor intenso e fidelíssimo à Língua Portuguesa, que o mesmo é dizer — a Portugal.
Dizem que os Poetas adivinham o futuro. Afonso Lopes Vieira adivinhou-o, indo buscar as raízes da sua descoberta aos Antigos, que ele «descobriu» também.
Este adivinho do futuro «adivinhou» o Passado, através do seu lúcido espírito de Poeta, limpando-o, clarificando-o, depurando-o da compreensão corrente no seu tempo, académica e grandiloquente. Onde outros viam poeira suja e quente, viu ele neblina translúcida e fresca. O que então se dizia da Pátria, em tropos empolados ou cavernosos, disse-o ele com cristalina e radiosa simplicidade.
Um outro Grande, António Sardinha, chamou-lhe «Perceptor da Sensibilidade Portuguesa», e Afrânio Peixoto – «Condestável das Letras Lusitanas».
Foi, na verdade e substancialmente, um Artista de alta estirpe. Um homem assim é sempre um Apóstolo, um educador, na expressão pura, cheio do desejo de comunicar, de orientar, uma Pessoa que da sua própria Pessoa faz uma dádiva constante.
«Dar-se foi sempre a suprema ambição deste homem» — escreveu a seu respeito, lapidarmente, o Poeta Américo Cortez Pinto.
Deu a sua sensibilidade aos pequeninos, em pequenas obras primas — e aos grandes em livros que são lições do mais puro Amor a Portugal. Essas foram as suas maiores dádivas. Mas deu também o seu Pão e o seu Lar a dezenas de criancinhas do seu bairro, que ele e a Ilustre Senhora que foi sua mulher educavam, quase anonimamente. Deu, em Fátima, o seu amor cristão aos enfermos. E deixou, por fim, a sua Mulher o encargo de entregar já, à formação da Juventude, o presente sem par da sua maravilhosa casa de S. Pedro de Moel.
Este Homem Superior impressionava quantos o viam e seduzia quantos o conheceram de perto. Um feitio aparentemente «blasé» e distante, uma constante elegância de modos, de vida, de atitudes, tanto mentais como morais — e até físicas — uma singeleza fidalga, um «luxo franciscano», onde a simplicidade era filtrada por um gosto apuradíssimo e a riqueza se mostrava sempre tão discreta — tudo isto convergia numa ideia, que era obsessão: o amor a Portugal, ao seu Povo sempre tão vicentino e a tudo quanto ao Povo legitimamente pertencia. Amava tanto o Povo quanto detestava a multidão. Para aquele, o simples lirismo cantante do seu verbo, quer em prosa, quer em verso. A esta, só a atingem as frases retumbantes e vociferadas, que ele desprezava — ou repelia.
A sua linguagem não dissimulava, é verdade, mas não mostrava a fortaleza do coração viril e destemido do trovador que ele era; e tão português, tão dentro do feitio nacional, brando, suave, todo em meias tintas, todo guitarras e sonho — feitio que não deixava adivinhar facilmente aos estranhos o latente potencial de valentia que construiu a Nação e a mantém.
Assim se compreenderá talvez melhor o gosto com que ele trabalhou nos postais; era uma obra que ia direita ao Povo, para desinteressadamente o servir.
Assim se compreende como ele, a uma pergunta que se lhe fez, respondesse: «quanto a remuneração, quero duas colecções de postais. Fiz isto por gosto e aliviou-me a nevrite»... Elegância, galantaria, pudor de alegrar serviços.
Faleceu Afonso Lopes Vieira em 25 de Janeiro de 1946. Nasce no espírito de todos a ideia de se acrescentar a cada colecção que ele criara, um texto do seu criador. O Dr. Hipólito Raposo, grande íntimo do Poeta e também ilustre homem de letras, acedeu a escolher os versos e o trecho de prosa com que a Administração Geral dos C.T.T. traz uma homenagem à memória do seu Grande Colaborador. Mas muito mais grata ao seu espírito foi, certamente, o saber com que largueza a sua iniciativa foi compreendida pela Administração Geral, fixando-se em vinte milhões a tiragem destes postais.
Vinte milhões de postais, com bocadinhos de oiro dos nossos Poetas e dos nossos Escritores — que parecem brilharem mais ainda assim isolados do que em livro — hão-de passar sob os olhos distraídos ou desinteressados de quarenta milhões de pessoas; é impossível admitir-se que de tão vasta sementeira, nada resulte. Antes se pode bem prever que, para muitos, alguns grandes nomes da nossa literatura vão passar a ser lidos e amados e deixar de ser conhecidos apenas de ouvido.
Para alguns, serão os postais lembranças do que já leram — mas para a maioria das pessoas serão verdadeiras revelações.
«E os que nos amem, que por cá ficarem mais nos amam depois, tendo saudades», escreveu Afonso Lopes Vieira, profeticamente, num dos seus primeiros livros.
Morreu o Poeta. E é assim, como ele disse. Os que o amaram, parece que mais o amam agora. É assim.
É com uma grande saudade que evoco a sua memória e a sua figura gentil, tal qual a vi, certa manhã outoniça, de camisola nazarena, cabelo solto à brisa do mar, sobre as arribas luminosas de S. Pedro, recitando, para mim e para um pescador amigo, versos inéditos.
Era bem o Condestável das Letras, ilustrando, num momento, aquela quadro maravilhosa que foi o lema de toda a sua vida:
Foi por amor de ti, terra formosa,
Por te amar com tão fundo sentimento,
que fui pregador, e em prosa,
fiz meus sermões de Admiração ao vento...
Martins Barata